terça-feira, 25 de agosto de 2020

Liberdade. A verdadeira!

Estou a ler, entre outras coisas, os contos de Flannery O'Connor. Em meio a seus personagens grotescos e trágicos, encontro muito de redenção e beleza. E eu costumo escrever algo sobre minhas leituras em outro canal, o Medium.

Neste caso, do conto A vida que você salvar pode ser a sua, escrevi dois textos (Parte 1 e Parte 2). Reproduzo aqui o segundo deles, pois, embora um tanto off-topic, tem muito a ver com o motociclismo em mim.

Ademais, a pandemia nos tem deixado a todos bastante inativos. Faz-me bem movimentar um pouco este blog, mesmo que não me mate a saudade de rodar.

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Posso cá pensar em um ou dois aspectos aos quais poderíamos ser levados por este conto de O’Connor, eu dizia. E cá estou realmente a pensar em um destes aspectos.

Pois, se “é curioso como os automóveis costumam ser personagens dos contos de Flannery”, devo dizer que, neste caso, o automóvel bem poderia ser minha Harley Davidson.

É bem comum no meio motociclístico o apelo à liberdade. É um apelo comum e bastante piegas, geralmente, exceto por algumas poucas peças como a da ilustração abaixo.

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E é piegas não pelo apelo à liberdade em si, afinal, ainda que o homem não saiba bem o que ela significa, é um anseio legítimo. Mas é piegas porque, em não sabendo bem o que significa “liberdade”, o apelo é algo tão vago, etéreo, abstrato, que não significa nada realmente senão uma desculpa para falar de moto.

Bem, é lá uma boa desculpa, devo confessar. Mas passar das peças publicitárias a textos (e vídeos) do tipo “why I ride” é algo muito mais compensador. Esbocei meu próprio “por que ando de moto” nos termos que seguem:

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“Mas que tem isso com o conto?” — talvez algum leitor apressado há de perguntar. “Tudo, meu caro, tudo!” — eu prontamente responderia, acrescentando que estou a imitar a própria O’Connor a dar spoilers de mim mesmo logo ao começar a escrever.

Desde o começo do conto saltam aos olhos a cruz torta e o automóvel. O Sr. Shiftlet tem um nome que pode sugerir mudança e esta mudança bem poderia ser a de marchas. Ele sempre desejou um automóvel — foi nos dito — e olha comprido para ele desde que chegou ao terreno da Sra. Crater. E ele o terá.

Primeiro, porém, é preciso dizer o que ele diz:
Minha senhora, o homem se divide em duas partes, corpo e espírito. (…) O corpo, sabe, é como uma casa: não vai a lugar nenhum; mas o espírito é como um automóvel, está sempre em movimento, sempre… (…) Só estou dizendo é que o espírito de um homem é mais importante para ele do que qualquer outra coisa. (…)
Talvez haja aí algum resquício daquela ideia de que o corpo é uma prisão para a alma. Mas eu penso que esta dicotomia retórica não serve a isso. Serve, antes, para nos lembrar de Mateus 10:28:
Não temais os que matam o corpo e não podem matar a alma; temei, antes, aquele que pode fazer perecer no inferno tanto a alma como o corpo.
Ou de Mateus 16:26:
Pois que aproveitará o homem se ganhar o mundo inteiro e perder a sua alma? Ou que dará o homem em troca da sua alma?
Ah! É fundamental que o homem cuide de seu espírito ainda mais do que cuida de seu corpo. Num porvir ele terá ambos, mas é aquela, não este, o que determinará o estado de ambos.

Ora, o espírito foi criado para ser livre. Não para se libertar do corpo, nem para se libertar de prisões para o corpo, mas para aquela verdadeira liberdade que apenas o Filho pode conceder (Jo 8:36).

Olhar para o Ford 1928–1929 é olhar para a minha Sportster 2007. Não como um bem em si, nem mesmo como o conforto, a dádiva que é, mas para o que representa, para o que prepara no espírito, como o pretexto para o prazer da Presença.

É como um prazer que remete a um maior. Um “já, mas não ainda”. Como uma satisfação que em si é insatisfação. É como repetir com Lewis:
Se eu encontro em mim um desejo que nenhuma experiência desse mundo possa satisfazer, a explicação mais provável é que fui feito para um outro mundo.
Ou com Agostinho:
Grande és Tu, Senhor, e sumamente louvável; grande é a Sua força, a Tua sabedoria não tem limites! Ora, o homem, esta parcela da criação, quer Te louvar, este mesmo homem carregado com sua condição mortal, carregado com o testemunho do seu pecado e como o testemunho de que resistes aos soberbos. Ainda assim, quer louvar-Te o homem, esta a parcela de Tua criação! Tu próprio o incitas para que sinta prazer em louvar-Te. Fizeste-nos para Ti e inquieto está nosso coração, enquanto não repousa em Ti.
Olhar para minha Harley Davidson assim é preparar meu espírito para a verdadeira liberdade que então será completa. É uma carruagem que me prepara para outra, quando enfim enfrentarei o Jordão. Quando, qual com Elias, um redemoinho será o motor desta carruagem. Quando, qual com o Sr. Shiflet, a tempestade varrerá o que ficou para traz.

Desce, minha carruagem. Para e me deixa subir. Vem e me leva ao lar, para a verdadeira liberdade, para junto dEle. E enquanto me leva, minha carruagem, vou cantando:
Swing low, sweet chariot
Coming for to carry me home
Swing low, sweet chariot
Coming for to carry he home

I looked over Jordan and what did I see
Coming for to carry he home
A band of angels coming after me
Coming for to carry me home

Swing low, sweet chariot
Coming for to carry me home
Swing low, sweet chariot
Coming for to carry me home

If you get there before I do
Coming for to carry me home
Tell all my friends I’m coming too
Coming for to carry me home

Swing low, sweet chariot
Coming for to carry me home
Swing low, sweet chariot
Coming for to carry me home


Louvado seja Ele!

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“A vida que você salvar pode ser a sua”. Em: O’CONNOR, Flannery. Um homem bom é difícil de encontrar e outras histórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2018.

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