Era 1998. Eu acho. Minha memória é uma traidora e tudo o que me resta sempre é um borrão. Mas é certo que era já quase o fim daquele período abençoado em que o câmbio rezava o dólar um por um.
Meu pai viria me visitar e eu liguei para ele com uma proposta indecente: “Pai, eu sempre quis um saxofone. Queria aproveitar o dólar e comprar um. Mas não tenho a grana. Pode comprar para mim e eu te pago em, sei lá, umas três parcelas?”
Para minha surpresa, depois de um “quanto é isso?”, meu pai concordou. Então fomos nós dois naquela lojinha obscura que não era maior que um corredor. Nenhum dos dois entendendo patavina sobre o instrumento. E fomos mal atendidos. Mas saímos de lá com um bom sax alto para estudante, um Yamaha YAS-23.
Comecei aulas. Era um conservatório perto de onde eu morava e o método era aquele do clarinete. Não gostei do ambiente que era um treco meio místico cheio de incenso e não gostei do professor. Procurei por um outro.
Foi neste outro que me convenceram de que a boquilha que veio com o sax era uma porcaria e que eu deveria usar a boquilha isso e aquilo. Havia, parece, um consenso de que o ideal é ter uma boquilha aberta e iniciar com palhetas macias e ir subindo a numeração. É a coisa mais esdrúxula do mundo. Mas na época eu não poderia saber e comprei a instrução.
E foi isto, junto com a falta de local para praticar (eu morava em apartamento e, além de ter vergonha, não queria incomodar os vizinhos), o que mais me dificultou a aprender qualquer coisa. Eu não conseguia soprar, não conseguia achar a embocadura, não conseguia dedilhar, não conseguia ler partitura… especialmente, não conseguia entrar no tempo e, se me concentrava em uma coisa, eu me perdia em todas as outras.
Minhas frustrações correram por cerca de cinco anos por umas quatro escolas diferentes (e, sim, todas com o mesmo método-clarinete e a balela da boquilha).
Neste tempo, desde o início, eu já olhava para aquela que viria a ser minha esposa. Porém, ainda estávamos longe de começar a namorar. Numa visita com os jovens da igreja em sua casa, vi que tinha um professor de sax bem em frente.
Meu futuro sogro ficou devidamente desconfiado, mas, se bem que claro eu gostasse de saber que ela estava ali ao lado, meu interesse era genuinamente em aprender a tocar. Acho que esta foi a terceira escola das quatro frustrantes.
Quando a garotinha Haydée soube que eu estava ali a fazer aulas, comentou comigo que tinha certeza de que dali a alguns anos eu estaria tocando muito bem. E começamos, de forma tácita, a alimentar o desejo de um dia tocarmos juntos, já que ela toca piano.
Os anos passaram e a frustração, para ambos, foi tão grande que o sax acabou por ficar guardado a espera de eu retomar uma coragem que sempre cedia à sensação de impotência e incapacidade.
Há alguns anos eu resolvi tentar de novo. Até gostei do professor, um molecão bastante agradável. Foi com ele a primeira vez que ouvi: “Não! Essas boquilhas não. Comece com esta que veio com o sax. É uma boa boquilha. Mais para frente, quando você estiver com a embocadura acertada e distinguir bem o som que você quer tirar, aí você pensa numa outra boquilha.”
Porém, após as três ou quatro aulas iniciais, quebrei meu tornozelo e fiquei de molho um tempão. E quando me recuperei, após alguma procrastinação, veio a pandemia. Parecia que eu estava fadado a jamais tirar uma nota qualquer do meu sax. Praticamente 23 anos e nada!
No fim de setembro de Ano da Grça de 2021, entretanto, estava eu a pensar se poderia tentar algo diferente para o nosso culto familiar de Natal. Divagava eu: “E se eu pegar o sax, procurar na internet a melodia e tocar, ainda que de forma bastante simplificada, Noite Feliz? E se houver algum curso online que me ajude ao menos a sair do zero? E se eu fizer em paralelo exercícios deste curso e treinasse um cântico natalino para este fim de ano?”
Procurei e encontrei um curso online bastante agradável de fazer e segui suas instruções. Ao mesmo tempo, fui tentando tocar Amazing Grace e Noite Feliz. Também fui experimentando as boquilhas e as palhetas que tinha. Em duas semanas já conseguia tocar alguma coisa com a Yamaha 4C e a Vandoren Java 2.
A frustração começava a se transformar em esperança e empolgação.
Enviei o sax a um luthier para trocar a cortiça que estava ressecada e uma revisão geral, comprei mais palhetas para continuar a testá-las, comecei a pesquisar sobre formas de melhor me gravar tocando (porque me gravar me ajuda a perceber minhas falhas)…
Meus filhos me incentivaram, dizendo às vezes que “nem é tão ruim te ouvir treinar” ou que “nossa, papai, até que está bem bom”. Minha Linda me sorria e sugeria tocarmos juntos, tanto tacitamente pelo olhar quanto explicitamente numa intimação que só as esposas sabem fazer.
Um amigo em particular me incentivava e trocava comigo figurinhas a respeito de música e edição. Outros amigos sabiam se alegrar com os que se alegram com os vídeos que eu tomava coragem de expor nas mídias sociais.
Esperança e empolgação começavam a tomar corpo.
Neste último fim de semana, o penúltimo deste novembro de 2021, chegaram meus últimos equipamentos para edição de áudio. Enquanto minha esposa trabalhava, eu os testava com voz (falando), sax (tocando o que sei) e piano (só fazendo barulho).
Quando ela chegou e me viu a fazer os testes, fez aquela intimação das esposas. Cheio de medo (o tempo e o acompanhamento são ainda a maior dificuldade que tenho), fui cedendo aos poucos. Até porque queria testar o microfone captando piano e sax.
Errei por diversas vezes e a cada erro conferíamos o som e fomos ajeitando a posição do mic. Até que saísse uma gravação aceitável. E saiu!
Não importa que eu tenha entrado atrasado e meu som seja de iniciante, que seja tudo muito básico, que o som tenha saído em mono e a qualidade não seja lá essas coisas, que a imagem da webcam seja o que é…
Toquei o tempo todo olhando para a imagem de nós dois no computador. No fim do vídeo nós trocamos olhares por este “espelho”. Aquele sorriso um tanto encabulado de ambos não é uma desculpa. É um prazer incontido pela realização de um sonho que nasceu quando minha Haydée era apenas uma garotinha.
E é a expectativa, uma antecipação de que este sonho pode ser realizado mais vezes. E, quiçá, cada vez melhor!
A Deus seja toda a glória e o nosso louvor!